>
www.misesjournal.org.br
MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy Law and Economics
e-ISSN 2594-9187
https://doi.org/10.30800/mises.2025.v13.1600
Marcos Giansante
Instituto Mises Brasil, São Paulo, Brasil
Giansante é um cirurgião digestivo e escritor brasileiro baseado em São Paulo. Estudante de pós-graduação em Economia Austríaca e Filosofia no Instituto Mises Brasil e contribui para debates acadêmicos e públicos sobre liberdade, ciência e poder estatal a partir de uma perspectiva liberal clássica. E-mail: giansante@dbsaudecirurgia.com.br
Resumo: Este artigo realiza uma análise crítica do livro Softwar: A Novel Theory on Power Projection and the National Strategic Significance of Bitcoin, de Jason P. Lowery, com base nos fundamentos da Escola Austríaca de Economia. A proposta de Lowery é interpretada como uma tentativa de inserir o Bitcoin no aparato estratégico estatal dos Estados Unidos, redefinindo-o como instrumento de dissuasão militar. Contra essa visão, o artigo argumenta que o Bitcoin é fruto de uma ordem espontânea, enraizado na filosofia da liberdade individual, da propriedade privada e da resistência à coerção. A análise estrutura-se em eixos conceituais, contrastando a visão militarizada de Lowery com os princípios epistemológicos, econômicos e éticos da tradição austríaca.
Palavras-chave: Bitcoin, Escola Austríaca de Economia, Estado, liberdade individual, praxeologia, coerção estatal, propriedade privada.
Este artigo tem como objetivo oferecer uma análise crítica da obra Softwar: A Novel Theory on Power Projection and the National Strategic Significance of Bitcoin, escrita por Jason P. Lowery e publicada em 2023. Ao longo de mais de 350 páginas, o autor propõe uma releitura radical do Bitcoin não como moeda, reserva de valor ou tecnologia financeira disruptiva, mas como uma nova forma de dissuasão militar, capaz de substituir armamentos convencionais em conflitos de projeção de poder no ciberespaço. Essa releitura estratégica, e não o Bitcoin em si, constitui o ponto central de análise deste artigo.
A proposição de Lowery, ao mesmo tempo inovadora e polêmica, requer um exame detido sob os marcos teóricos da ciência econômica, da filosofia política e da teoria da ação humana. A análise parte do reconhecimento de que Softwar não é um livro convencional de economia, nem tampouco uma obra de ciência empírica. Trata-se de um texto estratégico, escrito por um militar em atividade na Força Espacial dos Estados Unidos, com o intuito confesso de influenciar a doutrina de segurança nacional americana. Ainda assim, o livro propõe uma nova teoria sobre a função do Bitcoin no sistema internacional, e, portanto, suscita questões que ultrapassam o campo militar. As implicações econômicas, morais e epistemológicas de sua proposta merecem ser debatidas com rigor conceitual.
Este artigo se propõe, portanto, a examinar criticamente a visão de Lowery à luz da Escola Austríaca de Economia, em especial dos conceitos desenvolvidos por Carl Menger, Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Murray Rothbard e Hans-Hermann Hoppe. Também são incorporadas contribuições fundamentais do liberalismo clássico, como as reflexões de Adam Smith, Frédéric Bastiat e Alexis de Tocqueville. A partir da praxeologia, da teoria do valor subjetivo, da epistemologia liberal e da filosofia da liberdade, busca-se demonstrar que a proposta de militarização do Bitcoin representa não apenas uma ruptura com sua natureza original, mas também um risco à ordem espontânea que lhe deu origem.
A metodologia adotada neste artigo está dividida em dois eixos complementares: a abordagem performativa-estratégica utilizada por Jason P. Lowery e a análise teórico-crítica conduzida a partir da Escola Austríaca de Economia e do pensamento liberal clássico.
Lowery adota uma metodologia atípica do ponto de vista científico tradicional. Seu texto é declaradamente estratégico e performativo, estruturado como uma proposta doutrinária voltada à segurança nacional dos Estados Unidos. A obra se apoia em analogias militares, raciocínio doutrinário, metáforas históricas e interpretações livres de fenômenos digitais. Trata-se de uma construção argumentativa não empírica, com forte apelo retórico e finalidade normativa. O próprio autor assume que Softwar não é uma teoria científica convencional, mas uma nova forma de pensar o poder no ciberespaço, uma tentativa de reconceituar o Bitcoin como ferramenta de dissuasão militar e instrumento de soberania nacional. A obra também se insere na tradição da estratégia como lógica não linear, tal como formulada por Edward Luttwak, para quem “a estratégia não é uma lógica linear; ela frequentemente opera por meio de paradoxos” (Luttwak, 2001, p. 2). Assim, Softwar deve ser compreendido como uma proposta doutrinária, não como um tratado científico, cujo objetivo é inaugurar um novo paradigma dissuasivo baseado na resistência energética descentralizada.
Diante da natureza não científica, mas performativa, da obra analisada, este artigo adota uma metodologia teórica e crítica, estruturada como um ensaio com revisão narrativa, conforme proposta por Minayo (2001), adequada a estudos qualitativos que buscam compreender fenômenos sociais e epistemológicos complexos. Booth, Colomb e Williams (2008) observam que esse tipo de abordagem permite ao pesquisador construir um argumento coeso ao integrar diferentes referenciais teóricos.
O foco está na análise temática por eixos conceituais, que dialogam diretamente com os fundamentos da Escola Austríaca de Economia, da filosofia liberal clássica e da teoria política da liberdade. A crítica é conduzida por meio de categorias como ordem espontânea, ação humana, descentralização, epistemologia da ignorância e limites éticos da autoridade.
A metodologia austríaca, em particular, recusa a modelagem matemática e o empirismo positivista em favor da praxeologia, o estudo lógico da ação humana intencional. A partir dessa abordagem, o artigo analisa as implicações morais, epistemológicas e institucionais da proposta de Lowery, sem se restringir à lógica instrumental da estratégia militar. Também se recorre à tradição do liberalismo clássico para iluminar os riscos da militarização simbólica de uma tecnologia originalmente concebida como defesa contra a coerção estatal.
Essa estrutura metodológica visa garantir que a crítica não recaia sobre o protocolo do Bitcoin em si, cujo mérito tecnológico é amplamente reconhecido –, mas sobre a tentativa de reinterpretá-lo como vetor de poder coercitivo. Ao distinguir o protocolo da proposição estratégica, busca-se preservar o núcleo ético e libertário da inovação, contra o risco de sua instrumentalização por estruturas centralizadoras de poder.
A Subversão da Função Original: Do Dinheiro Livre ao Ativo de Guerra
O primeiro eixo temático da análise incide sobre a ruptura entre a proposta original do Bitcoin, como uma moeda digital descentralizada e resistente à censura, e sua ressignificação como ativo estratégico estatal. Jason Lowery propõe que o Bitcoin funcione como uma forma de power projection no domínio cibernético, transferindo para o campo energético-informacional a lógica da dissuasão militar tradicional. Segundo ele, ao impor custos físicos, na forma de gasto energético para validação de blocos, o Bitcoin se torna uma “arma” pacífica de contenção de ameaças no ciberespaço.
Essa leitura rompe com os fundamentos originários da criptomoeda. Conforme Menger (1983), o surgimento do dinheiro é um processo espontâneo de mercado, derivado das interações voluntárias entre indivíduos que escolhem, de forma descentralizada, os bens mais líquidos para mediação de trocas. A proposta de Lowery inverte essa lógica ao inserir o Bitcoin numa arquitetura estratégica e estatal de controle e defesa, deslocando-o de um bem emergente da ordem espontânea para um instrumento subordinado à razão de Estado.
Rothbard (1982, p. 45) afirma que “nenhum homem pode adquirir propriedade de outro homem; ele só pode adquirir propriedade de recursos previamente não apropriados”. Ao tentar transformar um sistema voluntário de validação e consenso em ativo militar de dissuasão estatal, compromete-se o princípio ético da não agressão e a natureza libertária do protocolo.
Além disso, o Bitcoin, como tecnologia, não foi projetado para centralização operacional, mas para dispersão de poder. Ludwig von Mises (1949) adverte que toda forma de controle central tende à ineficiência e à opressão, justamente porque ignora o conhecimento disperso e a subjetividade dos agentes econômicos. A tentativa de redirecionar essa tecnologia para fins militares estatais representa, nesse sentido, uma perversão de sua finalidade econômica e ética.
Por fim, Bastiat (2010) advertia que o Estado tende a se apropriar das ações produtivas da sociedade com o pretexto de proteger ou organizar aquilo que na verdade está funcionando sem ele. A conversão do Bitcoin em um bem estratégico controlado por forças armadas é um exemplo contemporâneo dessa apropriação sutil, que começa como doutrina e pode terminar como imposição.
O segundo eixo temático examina o problema do conhecimento, conforme delineado por Hayek (1945), que argumenta que a principal limitação de qualquer planejamento central está na impossibilidade de concentrar, em uma única mente ou instituição, o conhecimento disperso na sociedade. Lowery, ao propor uma integração entre o protocolo do Bitcoin e as estratégias militares nacionais, ignora esse princípio fundamental.
A ideia de submeter um sistema descentralizado, como a blockchain do Bitcoin, à lógica hierárquica de uma cadeia de comando estatal contraria a própria natureza dessa inovação. Como Hayek observa, “o problema econômico da sociedade é, portanto, principalmente o de uma rápida adaptação às mudanças particulares do tempo e do lugar” (Hayek, 1945, p. 524). Esse tipo de adaptação só é possível em estruturas flexíveis e policêntricas, não em estruturas monolíticas como as do aparato militar estatal.
Ao converter o Bitcoin em um instrumento de guerra regulada, institucionalizada e previsível, Lowery incorre naquilo que Hayek chamou de “pretensão do conhecimento”, a ilusão de que é possível dominar todas as variáveis relevantes por meio da razão instrumental. Essa ilusão já se revelou trágica em inúmeras experiências de centralização econômica e política. Aplicá-la ao universo do dinheiro digital e da segurança cibernética apenas muda a embalagem do erro, não sua essência.
A epistemologia austríaca, ancorada na ignorância irredutível e na ação humana como categoria interpretativa, sugere que a convivência com a incerteza é uma condição permanente. Tentar convertê-la em previsibilidade estratégica, por meio da domesticação militar de um protocolo aberto, equivale a negar a complexidade do mundo real. O Bitcoin é, antes de tudo, um reflexo dessa complexidade, e não uma ferramenta redutível ao controle estatal sem perda de sua essência.
O terceiro eixo temático aborda o risco de se considerar que uma tecnologia como o Bitcoin pode ser integrada aos mecanismos estatais de soberania sem que isso implique sua distorção estrutural. Jason Lowery propõe que o Bitcoin seja incorporado às forças armadas como uma espécie de “protocolo de força bruta pacífica”, inserido dentro da doutrina de defesa nacional. Essa proposição levanta uma questão delicada: até que ponto é possível conciliar um sistema voluntário e descentralizado com os pressupostos coercitivos do aparato estatal?
Do ponto de vista austríaco, essa tentativa é um contrassenso. A soberania estatal se fundamenta na coerção institucionalizada, na capacidade de impor normas, tributos e condutas, enquanto o Bitcoin foi concebido justamente como antídoto a esse tipo de poder central. Hans-Hermann Hoppe (2001) argumenta que “o Estado é a única organização da sociedade que se impõe por meio da agressão sistemática”, razão pela qual toda iniciativa que visa absorver bens espontaneamente desenvolvidos pela sociedade tende a corromper sua essência original.
Lowery não advoga pela estatização do protocolo, e o próprio funcionamento do Bitcoin a impediria, mas propõe uma instrumentalização simbólica e estratégica da rede. Trata-se de uma forma sutil de desvio de finalidade, que pode minar a confiança social no protocolo. Alexis de Tocqueville (2005) advertia que “as nações democráticas têm um apetite insaciável por centralizar o poder”, inclusive por meio da absorção de tecnologias que nasceram fora de seu domínio. Essa dinâmica pode transformar o Bitcoin em um instrumento paradoxal: nascido da liberdade, convertido em ferramenta da autoridade.
A soberania tecnológica, nesse contexto, revela-se uma ilusão. Nenhuma arquitetura digital criada para resistir à captura pode sobreviver ilesa à sua utilização simbólica como parte de um aparato coercitivo. O simples fato de que o protocolo passe a ser compreendido, ainda que retoricamente, como um ativo estatal já é suficiente para comprometer sua neutralidade e sua função como alternativa real ao monopólio monetário.
O quarto e último eixo temático considera as implicações éticas e epistemológicas de se reinterpretar o Bitcoin como uma extensão da força militar. A proposta de Lowery, embora não envolva o controle direto do protocolo, altera sua natureza simbólica e narrativa. Ao fazer isso, desloca o sentido original do projeto de Satoshi Nakamoto — voltado à liberdade, privacidade e descentralização, para uma moldura estatal, hierárquica e belicista.
Essa ressignificação não é neutra. Conforme Smith (1983), os sistemas morais se baseiam em expectativas compartilhadas de justiça, reciprocidade e confiança. Quando uma tecnologia é associada à coerção, mesmo que indiretamente, sua legitimidade ética é afetada. O Bitcoin, ao ser vinculado a uma estratégia de dissuasão militar, deixa de ser apenas uma ferramenta de liberdade para se tornar também um vetor simbólico de poder, e isso reconfigura sua função social.
Do ponto de vista epistemológico, o risco é ainda maior. A narrativa de Lowery sugere que problemas de segurança global, coordenação geopolítica e defesa nacional podem ser resolvidos por meio de um protocolo descentralizado, como se fosse possível converter um sistema de natureza aberta e probabilística em uma engrenagem previsível de dissuasão estratégica. Essa extrapolação configura uma forma de reducionismo técnico, que ignora os limites do conhecimento e da ação humana.
A Escola Austríaca sempre advertiu contra esse tipo de racionalismo ingênuo. Mises (1922) já afirmava que “a ação humana é necessariamente incerta” e que os modelos centralizadores fracassam justamente por desprezar a complexidade dos fenômenos sociais. Ao projetar sobre o Bitcoin uma função militar, Lowery incorre nesse erro clássico: o de tentar transformar um instrumento de liberdade em um mecanismo de controle previsível.
Em última instância, a proposta de Softwar pode ser lida como uma tentativa de reapropriação simbólica, ainda que não técnica, de uma das maiores inovações descentralizadas do século XXI. Cabe à crítica filosófica e econômica apontar os riscos dessa tentativa e reafirmar os valores originais que inspiraram o surgimento do Bitcoin: liberdade, confiança mútua, descentralização e resistência à coerção.
A proposta de Jason P. Lowery em Softwar representa uma tentativa ousada de reconceituar o Bitcoin como instrumento de projeção de poder no domínio cibernético. No entanto, como procuramos demonstrar ao longo deste artigo, essa proposta impõe distorções conceituais, epistemológicas e éticas que não podem ser ignoradas. Embora não se trate de uma teoria científica nos moldes tradicionais, Softwar busca criar um novo enquadramento estratégico para o Bitcoin, um protocolo originalmente concebido como defesa contra a coerção estatal, transformando-o em ferramenta estatal de dissuasão.
A partir das lentes da Escola Austríaca de Economia e do pensamento liberal clássico, mostramos que essa transformação representa um risco substancial à ordem espontânea, à liberdade individual e ao processo social descentralizado. A praxeologia, enquanto método de análise da ação humana intencional, revela a inadequação de qualquer tentativa de instrumentalizar fenômenos emergentes, como o próprio Bitcoin, dentro de uma lógica militar centralizadora. Do ponto de vista epistemológico, o projeto de Lowery incorre na arrogância do conhecimento total, ignorando os limites da razão humana e as consequências não intencionadas da ação estatal.Mais do que uma divergência teórica, a proposta de Softwar expressa um conflito entre visões de mundo: de um lado, a confiança na ordem construída de baixo para cima, pelas ações livres dos indivíduos; de outro, a fé na imposição de cima para baixo, guiada pela força e pela autoridade. É nesse ponto que a crítica austríaca se mostra mais relevante, ao lembrar que nenhuma inovação tecnológica pode, sem risco, ser arrancada de seu contexto ético e histórico para servir a projetos de poder.
Ainda assim, é justo reconhecer que a tentativa de Lowery inaugura uma nova fronteira no debate sobre criptomoedas, segurança e soberania. Sua ousadia em propor um novo uso estratégico para o Bitcoin, mesmo que profundamente controversa, contribui para o amadurecimento da discussão pública sobre os rumos dessa tecnologia. Recusar seu projeto não significa desconsiderá-lo, mas enfrentá-lo com os instrumentos da razão, da liberdade e da responsabilidade moral.
Concluímos, portanto, reafirmando o ethos originário do Bitcoin: liberdade, descentralização, confiança mútua e resistência à coerção. Defender esses princípios é preservar não apenas a integridade de uma tecnologia inovadora, mas o próprio horizonte ético em que ela foi concebida.
Bastiat, F. (2011). A lei. Instituto Ludwig von Mises Brasil. https://www.mises.org.br/Ebook.aspx?id=9
Booth, W. C., Colomb, G. G., & Williams, J. M. (2008). The craft of research (3rd ed.). University of Chicago Press. Recuperado de https://press.uchicago.edu/ucp/books/book/chicago/C/bo5954165.html
Hayek, F. A. (1945). The use of knowledge in society. The American Economic Review, 35(4), 519-530. Recuperado de: https://www.econlib.org/library/Essays/hykKnw1.html
Hoppe, H.-H. (2001). Democracy: The god that failed. Transaction Publishers. https://mises.org/library/democracy-god-failed
Lowery, J. P. (2023). Softwar: A novel theory on power projection and the national strategic significance of Bitcoin. Independently published. https://www.amazon.com.br/dp/B0BW24JQVK
Luttwak, E. N. (2001). Strategy: The logic of war and peace (Revised and enlarged ed.). Harvard University Press. https://www.hup.harvard.edu/books/9780674007031
Menger, C. (1983). Princípios de economia política. (Série Os Economistas). São Paulo: Abril Cultural.
Minayo, M. C. de S. (2001). Pesquisa social: teoria, método e criatividade (19th ed.). Vozes.
Mises, L. von. (1949). Human action: A treatise on economics. Yale University Press. https://mises.org/library/human-action-0
Rothbard, M. N. (1982). The ethics of liberty. Humanities Press. https://mises.org/library/ethics-liberty
Smith, A. (1983). A riqueza das nações (Vol. I–II). Abril Cultural. https://www.econlib.org/library/Smith/smWN.html
Tocqueville, A. de. (2005). A democracia na América. Martins Fontes